#Opinião – Enterrar os mortos e cuidar dos vivos
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Opinião – Enterrar os mortos e cuidar dos vivos
Há poucos dias, a propósito do erro médico, disse a Ministra, pragmática, “Enterrem-se os mortos e trate-se dos vivos”. Aqui d’el rei! Pois bem, a expressão terá sido pouco feliz, mas a verdade é que a receita é indispensável à salubridade pública, devendo aplicar-se a todos os putrefeitos, sem pejo. E, assim o entendendo, o mesmo diremos todos relativamente ao Serviço Nacional de Saúde, se este, algum dia, jazer por aí. O SNS está doente, padece há muito de umas quantas doenças crónicas, atempadamente diagnosticadas, mas nunca tratadas, e, agora, foi levado ao tapete, desamparado, vítima da pancadaria de uns e de outros, sem misericórdia. À primeira vista, para quem vai seguindo a Ministra da Saúde, a razão da contenda pode parecer óbvia: de um lado, ‘os uns’, defensores do SNS que não alinham com negociatas na saúde; da outra banda, ‘os outros’, os maus, modernos papões, comilões de doentes e achacados. Afinal, a esquerda descobriu agora que há umas greves más… Entretanto, o Governo já afiançara a natureza selvagem da mais recente greve dos enfermeiros e apontara o dedo a uns malvados, não os enfermeiros que ele próprio apoiara nos tempos das ‘greves boas’ contra a austeridade do Passos Coelho, mas os outros, os amantes do lucro, que conspiram contra o SNS, verdadeiros papões dos tempos modernos. Ora, a senhora Ministra, (des)temida como só ela, fez braço de ferro, cortou relações com os enfermeiros, acusando-os de não cumprirem os serviços mínimos, e exibiu-lhes o cartão amarelo. E, vai daí, da requisição civil à intimação, à espera do vaticínio dos tribunais, a luta continua, selvagem para uns, legítima e necessária para outros, justificando até a greve de fome de um dirigente sindical à porta do Parlamento. E, por todo o lado, os doentes continuam a sucumbir à porta do lastimoso SNS, alegadamente por culpa dos tais mauzões, já que a Geringonça, essa sim, nutre grande amor pelo serviço público, um amor apimentado por umas valentes cativações que lhe causam grandes mazelas, mas disso ninguém quer falar. Para ajudar à festa, a ADSE entusiasmou-se e resolveu ajustar contas com os grupos privados prestadores de cuidados de saúde (confrontou os valores praticados por aqueles em anos passados, calculou o valor mínimo de cada acto, e, sem mais, exigiu a devolução do excedente). E a claque dos ‘uns’ rejubilou contra ‘os outros’, os maus, amantes do vil metal, vendilhões da saúde. Ninguém parece querer discutir a sustentabilidade do sistema, a justiça social destes sub-regimes, a sua deficiente e amadorística gestão, e nem mesmo destacar a sua maior virtude – a solidariedade -, que assegura a todos os funcionários do Estado, com maiores ou menores descontos, os mesmíssimos cuidados de saúde. Pelo contrário, regozijam-se todos com uma guerra de trincheiras, enfeitadas com as bandeiras de ideologias esquecidas no meio de muitas acusações e poucas contrições. A lição está no ‘Os Uns E Os Outros’, filme de Claude Lelouch, que retrata a vida de homens e mulheres que, vivendo em países diferentes, se apaixonam através da música, e vale a pena vê-lo como um hino ao amor, mas principalmente pela recusa de um maniqueísmo que divide o mundo entre bons e maus. Não haverá nada mais triste e estéril do que passar a vida entrincheirado de um lado, contra o outro, incapaz de saltar muros, passar pontes e construir caminhos. E, por isso, se não interrompermos o apodrecimento do SNS, é possível que ele jaza em breve, moribundo, coberto de pútridas escaras, provocadas pelo abandono de quem dele devia ter cuidado, e, então, assistiremos, ‘os uns’ e ‘os outros’, ao enterro deste velho e estimável Senhor. Por culpa de todos!
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Opinião – Enterrar os mortos e cuidar dos vivos
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Opinião – Incendiários da palavra
Rui Bebiano
É nos momentos mais duros e difíceis da vida coletiva que se pode ver a grandeza daqueles que nela assumem as maiores responsabilidades. Mas também a torpeza de alguns deles. Sob a tirania, em condições de guerra ou quando ocorrem catástrofes naturais, há sempre os que se unem, muitas vezes a partir de posições e de escolhas diversas, ou mesmo contrárias, para, diluindo momentaneamente as maiores diferenças, superar da melhor maneira possível aquilo que a todos atingiu. Em França, o combate clandestino da Resistência contra o invasor nazi constituiu um exemplo histórico maior dessa grandeza, aproximando os franceses amantes da liberdade e da terra-mãe, de comunistas a conservadores patriotas, para lutarem por esse bem maior que era a derrota militar do ocupante.
No contexto da terrível calamidade dos incêndios e da enorme destruição de vidas humanas e de bens que estes provocaram em Junho e agora neste Outubro, a interpretação das circunstâncias, dos factos e das respostas pode e deve, naturalmente, ser objeto de escrutínio. Erros existiram, ao longo de anos e de décadas, na gestão das florestas e dos mecanismos de prevenção, e na gestão deste momento mais crítico também alguns foram cometidos. É impossível, sob o efeito da inesperada desgraça, agir sempre de forma inteiramente certa e segura. E tudo o que aconteceu pode e deve merecer um debate e uma intervenção adiados desde há muitos anos por sucessivos governos de diferente orientação partidária.
Porém, é de todo inaceitável o modo como um determinado setor associado às atuais direções dos partidos da direita parlamentar e apoiado pelas televisões e pela maioria dos jornais, transformou a catástrofe, as mortes, a destruição, a dor e o medo das pessoas em agressiva arma de arremesso político e em fator de instabilidade. Justamente quando, perante tamanha adversidade e face �� compreensível comoção humana que a acompanhou, mais preciso era encontrar uma resposta coletiva, um esforço de acalmia e um clima de serenidade possível, de modo a enterrar os mortos, a cuidar dos vivos e, como se impõe, a tomar medidas.
Precisamente quando escrevia esta crónica, chegou-me uma espantosa frase, acabada de pronunciar na Assembleia da República, quando da entrega da moção de censura ao Governo, pelo deputado Nuno Magalhães, do CDS. Ela ficará por certo nos anais da demagogia mais infame: «Cabe ao PCP, ao PS e ao BE avaliarem se a morte de 100 pessoas não é grave.» Apesar dela ser de iniciativa pessoal, é a expressão extrema de uma atitude própria de quem confunde a mais abjeta chicana política, que não se importa de jogar com a morte, a dor, o medo e o desamparo de tantas pessoas, para conseguir, através da manipulação da opinião, derrubar um governo legítimo que, ademais, tem nas frentes essenciais da governação obtido claras e sucessivas vitórias, traduzidas em sondagens públicas sucessivamente favoráveis.
O ensaísta e escritor alemão Hans Magnus Enzensberger observava em 1994, em «Perspetivas da Guerra Civil», a agressividade, aparentemente inexplicável, dos grupos de jovens marginalizados pelo sistema que, no coração das principais cidades dos países industrializados, estavam a banalizar uma violência social até então desconhecida na Europa. Temos visto como essa marginalização ampliou clivagens sociais na origem de alguns dos mais graves problemas que hoje tocam o continente e o mundo. O que é particularmente preocupante é que, em Portugal, é de dentro de alguns dos partidos políticos formalmente integrados na democracia representativa que está a ser lançada a semente do desentendimento e da violência. As estratégias de conflito, usadas na Europa pela extrema-direita, têm entre nós assento na Assembleia da República, revelando o verdadeiro rosto de quem lhes dá corpo.
Opinião – Incendiários da palavra
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